quarta-feira, maio 27, 2009

Em terras de Simón Bolívar





Luiz Ricardo Leitão – 03/12/2008


Escrevo diretamente de Caracas, na Venezuela, onde tive a honra e o prazer de ministrar uma oficina de Literatura para um grupo de jovens profissionais da Vive-TV, emissora estatal que difunde e estimula as lutas e iniciativas comunitárias em todo o país. O clima por aqui é de enorme efervescência: há um processo de mudanças em marcha, liderado pela figura polêmica e singular de Hugo Chávez, ao qual ninguém consegue ficar indiferente, o que estimula a crescente politização da vida pública nacional.

O ambicioso projeto da “Revolução Socialista Bolivariana” segue seu curso, em meio a vários desafios e obstáculos cuja superação, por vezes, nos parece quase impossível. Apesar da Constituinte, a estrutura do Estado ainda é incapaz de impulsionar todas as medidas reclamadas pela população. Além disso, o poder dos monopólios e das corporações transnacionais permanece praticamente incólume, fato que soa como um paradoxo dentro de um regime que se pretende socialista. Nacionalizaram-se algumas empresas (entre elas, siderúrgicas, indústrias têxteis e até mesmo o afamado Hilton Hotel, que agora se chama Alba), é bem verdade, mas o capital privado continua a faturar milhões na terra de Simón Bolívar.

A trágica herança de décadas de submissão da burguesia aos interesses do imperialismo ianque está bem visível na própria fisionomia da metrópole. Quase todas as encostas de Caracas (situada em uma região montanhosa a poucos quilômetros do litoral) foram ocupadas por condomínios luxuosos, tal como ocorre na zona sul do Rio de Janeiro, ou por moradias populares. Estas configuram uma ampla malha de comunidades a que os habitantes locais chamam de barrios. Elas me evocam de imediato o cenário das favelas cariocas, mas com uma diferença básica: em vez do poder absoluto das ‘milícias’ ou dos bandos de traficantes que há nos morros cariocas, surgem nesses espaços os Conselhos Comunitários, uma forma ainda incipiente, porém efetiva, de inserir o povo venezuelano na revolução proposta por Chávez.

No asfalto, as seqüelas do capitalismo periférico também se notam. Com a gasolina a preço de banana, o número de carros não pára de crescer. O tráfego é caótico, os motoristas ignoram todas as regras de trânsito e os congestionamentos são insuportáveis até mesmo para um paulistano habituado à paranóia das marginais do Tietê. O novo alcaide da velha Caracas, Jorge Rodríguez (PSUV), promete investimentos no transporte coletivo e de massa (já existem seis linhas de metrô em funcionamento), mas esta batalha deverá ser bem mais árdua do que a própria Revolução Bolivariana... Isso sem falar na febre dos celulares (há casais que almoçam sem conversar entre si, presos ao telefone durante a refeição), um índice eloqüente da sedução que a sociedade de consumo pós-moderna exerce sobre a classe média.

No plano político, a efervescência não tem fim. A julgar pela quantidade de textos e análises que circulam pela internet, as eleições do último dia são um exemplo cabal do fenômeno. Há quem jure que o chavismo agoniza, há quem se empolgue com os números do novo partido socialista (PSUV). Como fugaz observador do pleito, devo dizer que “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”... O PSUV logrou recuperar-se da derrota sofrida há um ano, quando a oposição venceu por estreita margem o referendo sobre as emendas constitucionais e barrou as alterações postuladas por Chávez. Com quase 1,2 milhão de votos a mais que os adversários, o partido elegeu 17 dos 22 governadores estaduais, mas amargou sérios reveses em algumas das províncias mais ricas do território, sobretudo em Zulia (região petrolífera), Táchira e Miranda. Mais além dos números, porém, o fato incontestável na Venezuela é a crescente inserção dos movimentos sociais na vida nacional, decerto o maior trunfo do projeto bolivariano em curso.

É evidente que uma parte da oposição já não cultiva o mesmo tom bélico e agressivo que levou ao golpe de 2003. Até na própria mídia, há sutis matizes dignos de atenção: enquanto a RCTV e a rede Globovisión seguem atacando ostensivamente o governo Chávez, a Venevisión resolveu adotar uma posição de “independência” ou “neutralidade”, evitando claramente provocações ou calúnias contra o regime. Chávez, por sua vez, insiste claramente na tática do confronto, não concedendo um minuto de trégua aos opositores. Alguns analistas julgam equivocada a tática do comandante, mas quadros do PSUV avaliam que, sem a polarização, não seria possível acelerar o processo de consolidação do poder popular e de incremento das forças bolivarianas. Ninguém pode prever o rumo das coisas por aqui, mas não há dúvida de que Chávez tem prestado uma ajuda decisiva às lutas dos povos latino-americanos.

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