terça-feira, outubro 13, 2015

A gênese da crise

Caíque Vieira

"As ideias se propagam de maneira diabólica"  (Robert Heilbroner em Os Filósofos Profanos)


A crise no Brasil reflete a luta pelo poder entre as duas vertentes do capitalismo: a neoliberal (Milton Friedman) X a social democrata (John Keynes).

O século XX no ocidente

O capitalismo nasce liberal no século XVIII, reina sozinho no século XIX , mas no século XX aparece seu antagônico, o comunismo, e, para enfrentá-lo, evolui, a contragosto, para uma segunda vertente, o Estado social (wellfare state). Ao longo de sua trajetória tentará a todo custo se manter liberal em uma luta ferrenha contra até mesmo a sua própria evolução, através de golpes de Estado, guerras civis e mundiais. Adam Smith foi o teórico inicial com a sua famosa tese da mão invisível do mercado e sua tradução através da expressão francesa "laissez faire, laissez passer" que significa deixa fazer, deixa passar, sem qualquer controle. Outros teóricos surgiram no século XX atualizando Adam Smith, entre eles Milton Friedman.

O repúdio ao controle do Estado é uma farsa ideológica porque a lógica do capitalismo é tão exploradora que ele não sobrevive sem o controle do Estado sobre os cidadãos explorados que, mais cedo ou mais tarde, se revoltariam contra o sistema. Portanto, a ideologia é dizer que o Estado deve ser mínimo. Só que não existe isso. O Estado é sempre uma potestade incontrastável. O que ele pode ser, na verdade, é socialmente mínimo, mas aí ele será máximo pró-corporações. É o que os liberais querem: não controlar as corporações, mas controlar os cidadãos e, quando houver crise, o Estado as socorre, como foi feito em 2008, o governo americano salvando os bancos, justamente os geradores da crise.

O capitalismo com as corporações sem controle sempre leva às crises econômicas, que são cíclicas. Essa foi uma descoberta de Karl Heinrich Marx e confirmada por John Maynard Keynes que era um ferrenho defensor do sistema, mas sob controle. Depois da grande crise levada ao mundo pelo liberalismo em 1929, Keynes propôs as políticas que neutralizassem as crises cíclicas, daí o termo anticíclicas.

Essas políticas propunham o protagonismo do Estado fortalecendo a demanda. Exagerando, ele dizia que, se fosse necessário, o Estado organizasse turmas de trabalhadores cavando buracos nas ruas e outras turmas tapando os mesmos buracos, desde que os pagasse para que esses trabalhadores com dinheiro incrementassem a economia (a bolsa família é uma típica política anticíclica keynesiana).

Depois da crise de 1929, o EUA adotou a doutrina de Keynes com o New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt que foi taxado de comunista por causa do "viés estatista". Rapidamente a economia capitalista retomou seu crescimento fazendo do país a maior potência do mundo. Já a Europa continuou a teimar com as políticas liberais que acabou levando aos fascismos (Alemanha, Itália, Portugal e Espanha) desencadeando a 2ª guerra mundial deflagrada pelo nazifascismo - ultracapitalismo, a quintessência da direita alemã e seus aliados - contra o que ainda restava de democracia no capitalismo (França e Inglaterra) e, especialmente, contra o comunismo soviético que se projetava como a antítese do capitalismo. 

O EUA, à época social democrata, pois adotara a doutrina keynesiana, se manteve neutro e afastado do conflito por muito tempo deixando que tanto a Alemanha quanto a URSS enfraquecessem seus respectivos exércitos e economias, até o momento em que ficou insuportável que um dos lados fosse o vencedor absoluto, então ele entra na guerra e detona as bombas atômicas no Japão aliado da Alemanha, em Hiroshima e Nagasaki, não porque fossem necessárias - o Japão já estava liquidado - mas porque era a oportunidade para a demonstração de seu grande poderio diante da URSS que já era vencedora do conflito. Começa então a guerra fria e a propaganda maciça contra o comunismo que seduzira corações e mentes em todos os quadrantes do mundo.

Com o fim da 2ª guerra, os líderes do ocidente reunidos em Bretton Woods adotaram a doutrina de Keynes para a economia capitalista ocidental. Keynes havia proposto uma moeda única, o bancor, mas os EUA insistiram que a moeda internacional deveria ser o dólar deles. Claro, eles a imprimem. Venceram Keynes nesse ponto. Como a fase do capitalismo era ainda a industrial, foi criado o Estado do bem-estar social (wellfare state) sendo possível a adoção das medidas anticíclicas. O capitalismo viveu seus 30 anos gloriosos (1945 - 1975).

O grande rival, a URSS, havia perdido 25 milhões de vidas, sua economia enfraqueceu consideravelmente e foi perdendo força na competição entre capitalismo e comunismo até que os capitalistas que não gostavam do Estado social, já na década de 60 começaram a pensar no retorno do liberalismo. Foi o que aconteceu começando com Pinochet no Chile e depois com Reagan nos EUA e Thatcher na Inglaterra.

O Consenso de Washington que pregava esse retorno foi aplicado na América do Sul, primeiramente no Chile, como mencionado, o que deu no maior engodo de propaganda como um sistema bem sucedido, mas, no fundo, um fracasso cavalar do ponto de vista social - extremamente concentrador de patrimônio e renda - e político - uma ditadura das mais sanguinárias. Depois os outros países foram adotando as ideias de Milton Friedman no Consenso de Washington. 

Como consequência da insatisfação gerada pelo Consenso foram surgindo os governos de "esquerda" na América do Sul tentando reintroduzir as ideias keynesianas, repudiando o que agora chamavam de neoliberalismo, enquanto a UE, em movimento contrário, destruía sua exemplar social democracia  aderindo ao novo liberalismo.

Nova crise liberal ou neoliberal nos EUA e UE, a de 2008, que pegamos a rebordosa e ainda sofremos as suas consequências. Agora sem uma grande teoria proposta porque o capitalismo, não mais industrial, está em sua etapa financeira, tornando obsoletas inclusive as teses anticíclicas, mas temos aí o exemplo da economia chinesa, um país com dois sistemas, que, embora com menor crescimento, continua a crescer e fazer frente aos EUA.  

As armas neoliberais no Brasil e na América Latina

Como se vê, há duas vertentes no capitalismo, nenhuma delas com Estado mínimo, mas com Estado - sempre uma potestade - que pode ser pró-sociedade ou pró-grandes corporações. Essa é a luta interna pelo poder dentro de um Estado capitalista que utiliza várias armas, uma delas é o terrorismo ideológico de que os defensores do Estado social são comunistas. Esse argumento, como mencionei, vem acompanhando a luta pelo poder entre essas duas vertentes desde o início contra Roosevelt. O Brasil não está sendo levado ao comunismo por três simples razões: 1. é um país parceiro da OTAN na produção de armamentos; 2. é um país cujos bancos e multinacionais têm lucros exorbitantes, estas enviando-os para seus países de origem; 3. é um país onde qualquer um que queira fundar uma empresa tem a ajuda de órgão do governo federal, o SEBRAE. Dizer que estamos na direção do comunismo, das duas, uma: ou má fé ou desconhecimento.

Ainda nesta luta, os neoliberais criaram outra arma, a Lei de Responsabilidade Fiscal que proíbe que o Estado seja gastador. Isto ata as mãos dos keynesianos, pois em tempo de crise na atividade econômica, Keynes preconizava um Estado gastador para estimular o espírito animal dos empreendedores. Uma vez estimulado, o Estado se compensaria com a arrecadação dos tributos advindos da atividade econômica.

A chamada pedalada fiscal não é roubo, mas um drible na Lei de Responsabilidade Fiscal que beneficia, por exemplo, o desempregado que estiver necessitando do auxílio desemprego. Como é isso? A verba do auxílio desemprego vem do Ministério do Trabalho que repassa à Caixa Econômica que a solicitou na medida das necessidades e paga o benefício. Acontece que algumas vezes o Ministério está sem dinheiro e pede à Caixa que pague de seu bolso, atrasando o pagamento do repasse. Passado o ano, depois de aprovada as contas do governo, ele faz o repasse. Como se vê, foi driblada a Lei de Responsabilidade Fiscal - uma arma neoliberal - mas o beneficiado foi o desempregado. Portanto, é questionável a criminalização da pedalada fiscal, principalmente em tempos de crises econômicas-financeiras de âmbito mundial.

A terceira arma é o argumento da corrupção usado contra todos os governantes pró Estado social e assemelhados ao keynesianismo: Getúlio, Juscelino, Jango, Lula e Dilma. Esse argumento, eles já notaram que sensibiliza a pequena burguesia e sempre o usam colocando, inclusive, uma cortina de fumaça protegendo a sonegação fiscal que impacta muito mais a economia e é um crime de natureza privada que eles querem esconder.

A quarta arma foi a desregulação da atividade financeira. Em 1932/1933, para conter os efeitos da depressão de 1929, os EUA editaram o Glass-Steagal Act, que separou as atividades dos bancos de depósito das dos bancos de investimento. Todos os países fizeram o mesmo controle, só que essa lei foi revogada em 1999 nos EUA e, logo em seguida, nos demais países, voltando a permitir aos bancos a utilização dos depósitos monetários de seus clientes para negócios deles próprios, bancos, inclusive a especulação nos mercados de valores mobiliários, de câmbio ou de mercadorias. 

A quinta arma, retórica, dos neoliberais é divulgar, diuturnamente, até que as pessoas passem a repetir de forma quase automática, que temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo. Não estamos nem no top 10. Mais acertado seria dizer que a arquitetura do nosso sistema tributário é ruim porque é na produção de bens e serviços onde mais incidem os tributos, onerando as empresas que repassarão os custos tributários para os consumidores, sendo que eles, ricos ou pobres, arcam igualmente. Um sistema tributário bom e justo é aquele cuja incidência dos tributos recai prioritária, direta e pessoalmente sobre o patrimônio e a renda. Seria um sistema de arrecadação progressiva onde os que podem mais pagam mais.

Conclusão

Os crimes cometidos pelos governos cujos Estados são sociais são equivalentes aos crimes cometidos pelos governos cujos Estados são neoliberais. São crimes típicos de uma ordem política contaminada pelo capitalismo. Não são novidades, como querem que acreditemos e, a partir daí, nos impingir o golpe branco do impeachment. O que há de novo é que, atualmente no Brasil, a participação do trabalho no PIB é de 38% - antes era de 28% - e a do capital é de 62% - antes era de 72%. O que está em jogo nessa luta entre essas duas vertentes é essa perda de 10% do capital. Esse ganho de 10% para a renda do trabalho foi adquirida nos governos capitalistas  do PT que lutam para se desvencilhar do neoliberalismo e alcançar a social democracia. A mídia, o quarto poder e grande aliada dos neoliberais, seletiva, esconde este fato e faz o resto.