sexta-feira, março 26, 2010

A reforma da saúde dos EEUU

Fidel Castro

Barack Obama é um crente fanático do sistema capitalista imperialista imposto pelos Estados Unidos ao mundo. "Deus abençoe os EUA”, conclui em seus discursos.

Alguns de seus fatos feriram a sensibilidade da opinião mundial, que viu com simpatia a vitória do cidadão afro-americano frente ao candidato da extrema direita do país. Apoiando-se em uma das mais profundas crises econômicas que o mundo conheceu e na dor dos jovens norte-americanos que perderam a vida ou foram feridos e mutilados nas guerras genocidas de conquista do seu antecessor, obteve os votos da maioria dos 50% dos norte-americanos que se dignaram a ir às urnas nesse país democrático.

Por elementares razões éticas, Obama devia abster-se de aceitar o Prêmio Nobel da Paz, quando já havia decidido enviar 40 mil soldados a uma guerra absurda no coração da Ásia.

A política militarista, o saque de recursos naturais, o intercâmbio desigual da atual administração com os países do Terceiro Mundo, em nada se diferencia de seus antecessores, quase todos de extrema direita, com algumas exceções ao longo do século passado.

O documento antidemocrático imposto na Cúpula de Copenhague à comunidade internacional – que havia dado crédito a sua promessa de cooperar na luta contra as mudanças climáticas – foi outro de seus fatos que desiludiram muitas pessoas no mundo. EUA, o maior emissor de gases de efeito estufa, não estava disposto a realizar os sacrifícios necessários apesar das palavras anteriores bajuladoras de seu presidente.

Seria interminável a lista de contradições entre as idéias que a nação cubana vem defendendo com grande sacrifício durante meio século, e a política egoísta desse colossal império.

Apesar disso, não temos nenhuma ojeriza a Obama, e muito menos ao povo dos EUA. Consideramos que a reforma da saúde constituiu uma importante batalha e um êxito de seu governo. Parece, entretanto, algo realmente insólito que 234 anos depois da Declaração de Independência, na Filadélfia, no ano de 1776, inspirada nas idéias dos enciclopedistas franceses, o governo desse país tenha aprovado a asistência médica para a imensa maioria dos cidadãos, algo que Cuba alcançou para toda sua população há meio século, apesar do cruel e desumano bloqueio imposto e ainda vigente por parte do país mais poderoso que já existiu. Antes, depois de quase um século de independência e de sangrenta guerra, Abraham Lincoln pode conseguir a liberdade legal dos escravos.

Não posso deixar de pensar que falamos de um mundo onde mais de um terço da população necessita de atenção médica e de medicamentos essenciais para garantir a saúde, situação que se agravará à medida em que as mudanças climáticas sejam cada vez maiores, em um mundo globalizado em que a população cresce, os bosques desaparecem, a terra agrícola diminui, o ar se torna irrespirável e a espécie humana que o habita – essa existente há menos de 200 mil anos – corre o risco de desaparecer como espécie.

Admitindo que a reforma do sistema de saúde signifique um êxito para o governo de Obama, o atual presidente dos EUA não pode ignorar que as mudanças climáticas significam uma ameaça para a saúde e, ainda pior, para a própria existência de todas as nações do mundo, quando o aumento da temperatura – para além dos limites críticos que estão à vista – dilui as águas congeladas das geleiras e das dezenas de milhões de quilômetros cúbicos armazenados nas enormes capas de gelo acumuladas na Antártida, Groenlândia e Sibéria se derretam em poucas dezenas de anos, deixando debaixo da todas as instalações portuárias do mundo e as terras onde hoje vive, se alimentar e trabalha grande parte da população mundial.

Obama, os líderes dos países ricos e seus aliados, seus cientistas e seus centros sofisticados de pesquisa sabem disso; é impossível que ignorem.

Compreendo a satisfação com que se expressa e se reconhece, no discurso presidencial, apoio dos membros do Congresso e a administração que fizeram possível o milagre da reforma da saúde, o que fortalece a posição do governo frente a lobistas e a mercenários da política que limitam as capacidades da administração. Seria pior se os que protagonizaram as torturas, os assassinatos por encomenda e o genocídio ocupassem novamente o governo dos EUA. Como pessoa inquestionavelmente inteligente e suficientemente bem informada, Obama conhece que não há exagero em minhas palavras. Espero que as tolices que às vezes expressa sobre Cuba não ofusquem sua inteligência.

Imigração

Por conta do êxito nesta batalha pelo direito à saúde de todos os norte-americanos, 12 milhões de imigrantes, em sua imensa maioria latino-americanos, haitianos e de outros países do Caribe demandam a legalização nos EUA, onde realizam os trabalhos mais duros e dos quais não pode prescindir a sociedade norte-americana, na qual são presos, separados de seus familiares e deportados a seus países.

A imensa maioria imigrou para a América do Norte como consequência das tiranias impostas pelos EUA aos países da região e a brutal pobreza a que vêm sido submetidos como conseqüência do saque de seus recursos e o intercâmbio desigual. Suas remessas familiares constituem uma elevada porcentagem do PIB de suas economias. Esperam agora um ato elementar de justiça. Se ao povo cubano foi imposta uma Lei de Ajuste, que promove o roubo de cérebros e dos jovens instruídos, por que são usados métodos tão brutais com os imigrantes ilegais dos países latino-americanos e caribenhos?

O devastador terremoto que açoitou o Haiti – o país mais pobre da América Latina, que acaba de sofrer uma catástrofe natural sem precedentes que implicou na morte de mais de 200 mil pessoas – e o terrível dano econômico, que outro fenômeno similar ocasionou no Chile, são provas eloquentes dos perigos que ameaçam a chamada civilização e a necessidade de drásticas medidas que outorguem à espécie humana a esperança de sobreviver.

A Guerra Fria não trouxe nenhum benefício à população mundial. O imenso poder econômico, tecnológico e científico dos EUA não poderia sobreviver à tragédia que ameaça o planeta. O presidente Obama deve buscar em seu computador os dados pertinentes e conversar com seus cientistas mais eminentes; verá o quão longe está seu país de ser o modelo que preconiza para a humanidade.

Por sua condição de afro-americano, ali sofreu as afrontas da discriminação, segundo narra em seu livro Os sonhos do meu pai; ali, conheceu a pobreza em que vivem dezenas de milhões de norte-americanos; ali, educou-se, mas, ali, também desfrutou como profissional êxito dos privilégios da classe média e terminou idealizando o sistema social em que a crise econômica, as vidas de norte-americanos inutilmente sacrificadas e seu indiscutível talento político lhe deram a vitória eleitoral.

Apesar disso, para a direita mais recalcitrante, Obama é um extremista a quem ameaçam com uma batalha no Senado para neutralizar os efeitos da reforma da saúde e sabotá-la abertamente em vários Estados, declarando inconstitucional a lei aprovada.

Sistema financeiro

Os problemas da nossa época são ainda muito mais graves.

O Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outros organismos internacionais de créditos, sob controle estrito dos EUA, permitem que os grandes bancos norte-americanos – criadores dos paraísos fiscais e responsáveis pelo caos financeiro no planeta – seja salvos pelos governos desse país em cada uma das frequentes e crescentes crises do sistema.

A Reserva Federal dos EUA emite a seu capricho as divisas conversíveis que financiam as guerras de conquista, as ganâncias do Complexo Militar Industrial, as bases militares distribuídas pelo mundo e os grandes investimentos com que as multinacionais controlam a economia em muitos países do mundo. Nixon suspendeu unilateralmente a conversão do dólar em ouro, enquanto as abóbadas dos bancos de Nova York guardam sete mil toneladas de ouro, algo mais que 25% das reservas mundiais desse metal, cifra que, ao final da Segunda Guerra Mundial, superava 80%. Argumenta-se que a dívida pública ultrapassa os 10 milhões de dólares, o que supera 70% de seu PIB, um peso que é passado para as novas gerações. Isso é afirmado quando, na verdade, é a economia mundial que sustenta essa dívida com os enormes gastos em bens e serviços para os quais contribui para adquirir dólares norte-americanos, com os quais as grandes multinacionais desse país vêm se apoderando de uma parte considerável das riquezas do mundo, e sustentam a sociedade de consumo dessa nação.

Qualquer um compreende que tal sistema é insustentável, e porque os setores mais ricos nos EUA e seus aliados no mundo defendem um sistema sustentável somente com a ignorância, as mentiras e os reflexos condicionados semeados na opinião mundial através do monopólio dos meios de comunicação de massa, incluindo as principais redes da Internet.

Hoje, o andaime entra em colapso diante do avanço acelerado das mudanças climáticas e suas fatais consequências, que põe a humanidade diante de um dilema excepcional.

As guerras entre as potências não parecem ser a solução possível às grandes contradições, como foram até a segunda metade do século 20; mas, por sua vez, incidiram de tal forma sobre os fatores que tornam possível a sobrevivência humana, que podem colocar fim prematuramente à existência da atual espécie inteligente que habita nosso planeta.

Ciência e desenvolvimento

Há uns dias, expressei minhas convicções de que, à luz dos conhecimentos científicos que hoje são dominados, o ser humano deverá resolver seus problemas no planeta Terra, já que jamais poderá ultrapassar a distância que separa o Sol da estrela mais próxima, localizada a quatro anos luz, velocidade que equivale a 300 mil quilômetros por segundo – como conhecem nossos alunos de escola secundária básica –, se ao redor desse sol existisse um planeta parecido com a nossa bela Terra.

Os EUA investem fabulosas quantias para comprovar se no planeta Marte há água, e se existiu ou existe alguma forma elementar de vida. Ninguém sabe para que, senão por pura curiosidade científica. Milhões de espécies vão desaparecendo em ritmo crescente em nosso planeta e as fabulosas quantidades de água constantemente estão sendo envenenadas.

As novas leis da ciência – a partir das fórmulas de Einstein sobre a energia e a matéria, e a teoria da grande explosão como origem das milhões de constelações e infinitas estrelas ou outras hipóteses – vêm dando lugar a profundas mudanças nos conceitos fundamentais como o espaço e o tempo, que ocupam a atenção e as análises de teólogos. Um deles, nosso amigo brasileiro Frei Betto, aborda o tema em seu livro A obra do artista: Uma visão holística do Universo, apresentado na última Feira Internacional do Livro de Havana.

Os avanços da ciência nos últimos cem anos têm impactado os enfoques tradicionais que prevaleceram ao longo de milhares anos nas ciências sociais e inclusive na Filosofia e na Teologia.

Não é pouco o interesse que os mais honestos pensadores prestam aos novos conhecimentos, mas não sabemos absolutamente nada do que pensa o presidente Obama sobre a compatibilidade das sociedades de consumo e da ciência.

Enquanto isso vale a pena dedicar-se de vez em quando a meditar sobre esses temas. Com segurança, o ser humano não deixará de sonhar e encarar as coisas com a devida serenidade e com nervos fortalecidos. É o dever, ao menos daqueles que escolheram o ofício da política e o nobre e irrenunciável propósito de uma sociedade humana solidária e justa.

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