Mauro Santayana
O capitalismo,
dizem alguns de seus defensores, foi uma grande invenção humana. De acordo com
essa teoria, o sistema nasceu da ambição dos homens e do esforço em busca da
riqueza, do poder pessoal e do reconhecimento público, para que os indivíduos
se destacassem na comunidade, e pudessem viver mais e melhor à custa dos
outros. Todos esses objetivos exigiam o empenho do tempo, da força e da mente.
Foi um caminho para o que se chama civilização, embora houvesse outros, mais
generosos, e em busca da justiça. Como todos os processos da vida, o
capitalismo tem seus limites. Quando os ultrapassa no saqueio e na espoliação,
e isso tem ocorrido várias vezes na História, surgem grandes crises que quase
sempre levam aos confrontos sangrentos, internos e externos.
A revista
Foreign Affairs, que reflete as preocupações da intelligentsia norte-americana
(tanto à esquerda, quanto à direita) publica, em seu último número, excelente
ensaio de George Packer – The broken contract; Inequality and American Decline.
Packer é um homem do establishment. Seus pais são professores da Universidade
de Stanford. Seu avô materno, George Huddleston, foi representante democrata do
Alabama no Congresso durante vinte anos.
O jornalista
mostra que a desigualdade social nos Estados Unidos agravou-se brutalmente nos
últimos 33 anos – a partir de 1978. Naquele ano, com os altos índices de
inflação, o aumento do preço da gasolina, maior desemprego, e o pessimismo
generalizado, houve crucial mudança na vida americana. Os grandes interesses
atuaram, a fim de debitar a crise ao estado de bem-estar social, e às
regulamentações da vida econômica que vinham do New Deal. A opinião pública foi
intoxicada por essa idéia e se abandonou a confiança no compromisso social
estabelecido nos anos 30 e 40. De acordo com Packer, esse compromisso foi o de
uma democracia da classe média. Tratava-se de um contrato social não escrito
entre o trabalho, os negócios e o governo, que assegurava a distribuição mais
ampla dos benefícios da economia e da prosperidade de após-guerra - como em
nenhum outro tempo da história do país.
Um dado
significativo: nos anos 70, os executivos mais bem pagos dos Estados Unidos
recebiam 40 vezes o salário dos trabalhadores menos remunerados de suas
empresas. Em 2007, passaram a receber 400 vezes mais. Naqueles anos 70,
registra Packer, as elites norte-americanas se sentiam ainda responsáveis pelo
destino do país e, com as exceções naturais, zelavam por suas instituições e
interesses. Havia, pondera o autor, muita injustiça, sobretudo contra os negros
do Sul. Como todas as épocas, a do após-guerra até 1970, tinha seus custos,
mas, vistos da situação de 2011, eles lhe pareceram suportáveis.
Nos anos 70
houve a estagflação, que combinou a estagnação econômica com a inflação e os
juros altos. Os salários foram erodidos pela inflação, o desemprego cresceu, e
caiu a confiança dos norte-americanos no governo, também em razão do escândalo
de Watergate e do desastre que foi a aventura do Vietnã. O capitalismo parecia
em perigo e isso alarmou os ricos, que trataram de reagir imediatamente, e
trabalharam – sobretudo a partir de 1978 – para garantir sua posição,
tornando-a ainda mais sólida. Trataram de fortalecer sua influência mediante a
intensificação do lobbyng, que sempre existiu, mas, salvo alguns casos, se
limitava ao uísque e aos charutos. A partir de então, o suborno passou a ser
prática corrente. Em 1971 havia 141 empresas representadas por lobistas em
Washington; em 1982, eram 2445.
A partir de
Reagan a longa e maciça transferência da renda do país para os americanos mais
ricos, passou a ser mais grave. Ela foi constante, tanto nos melhores períodos
da economia, como nos piores, sob presidentes democratas ou republicanos, com
maiorias republicanas ou democratas no Congresso. Representantes e senadores –
com as exceções de sempre – passaram a receber normalmente os subornos de Wall
Street. Packer cita a afirmação do republicano Robert Dole, em 1982: “pobres
daqueles que não contribuem para as campanhas eleitorais”.
Packer vai
fundo: a desigualdade é como um gás inodoro que atinge todos os recantos do
país – mas parece impossível encontrar a sua origem e fechar a torneira. Entre
1974 e 2006, os rendimentos da classe média cresceram 21%, enquanto os dos
pobres americanos cresceram só 11%. Um por cento dos mais ricos tiveram um
crescimento de 256%, mais de dez vezes os da classe média, e quase triplicaram
a sua participação na renda total do país, para 23%, o nível mais alto, desde
1928 – na véspera da Grande Depressão.
Esse
crescimento, registre-se, vinha de antes. De Kennedy ao segundo Bush, mais
lento antes de Reagan, e mais acelerado em seguida, os americanos ricos se
tornaram cada vez mais ricos.
A
desigualdade, conclui Packer, favorece a divisão de classes, e aprisiona as
pessoas nas circunstâncias de seu nascimento, o que constitui um desmentido
histórico à idéia do american dream.
E conclui: “A
desigualdade nos divide nas escolas, entre os vizinhos, no trabalho, nos
aviões, nos hospitais, naquilo que comemos, em nossas condições físicas, no que
pensamos, no futuro de nossas crianças, até mesmo em nossa morte”. Enfim, a
desigualdade exacerbada pela ambição sem limites do capitalismo não é apenas
uma violência contra a ética, mas também contra a lógica. É loucura.
Ao mundo
inteiro – o comentário é nosso- foi imposto, na falta de estadistas dispostos a
reagir, o mesmo modelo da desigualdade do reaganismo e do thatcherismo. A crise
econômica mais recente, provocada pela ganância de Wall Street, não serviu de
lição aos governantes vassalos do dinheiro, que continuaram entregues aos
tecnocratas assalariados do sistema financeiro internacional. Ainda ontem,
Mário Monti, homem do Goldman Sachs, colocado no poder pelos credores da
Itália, exigia do Parlamento a segurança de que permanecerá na chefia do
governo até 2013, o que significa violar a Constituição do país, que dá aos
representantes do povo o poder de negar confiança ao governo e, conforme a
situação, convocar eleições.
Tudo isso nos
mostra que estamos indo, no Brasil, pelo caminho correto, ao distribuir com
mais equidade a renda nacional, ampliar o mercado interno, e assim, combater a
desigualdade e submeter a tecnocracia à razão política. É necessário, entre
outras medidas, manter cerrada vigilância sobre os bancos privados,
principalmente os estrangeiros, que estão cobrindo as falcatruas de suas
instituições centrais com os elevados lucros obtidos em nosso país e em outros
países da América Latina.
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