quarta-feira, agosto 24, 2011

Milionários patrióticos: Mais Estado

Carta Maior - 24/08/2011

Primeiro, o megabilionário norte-americano Warren Buffet -dono de um patrimônio líquido de US$ 50 bi-- escreveu um texto jocoso no Time, no dia 15 de agosto. A contrapelo do ultra-neoliberalismo que pretende escavar o abismo com um duplo degrau de arrocho fiscal e vetos à taxação dos ricos, Buffet convocou o fisco dos EUA a deixar de mimá-lo com isenções absurdas da era Bush. "Enquanto os pobres e a classe média lutam por nós no Afeganistão, e enquanto a maioria dos americanos luta para sobreviver, nós, os megarricos, continuamos a receber nossos extraordinários incentivos fiscais". Buffet poderia ter incluído uma menção generalista citando a extinção da CPMF no Brasil, promovida em 2007 por uma coalizão midiático-conservadora. Passemos. Nesta 3º feira, foi a vez de um grupo de 16 endinheirados franceses seguir seu caminho. Em carta enviada ao 'Le Nouvel Observateur' eles conclamam o Estado francês a assumir suas responsabilidades fazendárias instituindo taxa extra sobre grandes fortunas. Tem aí um jogo combinado com Sarkozy. O aspirante a 'petit de Gaulle' anuncia nesta 4º feira medidas de arrocho para conter o déficit público. Um adicional mínimo sobre grandes fortunas suavizaria a percepção crescente de que há um escalpo em marcha no planeta: os prejuízos com a crise serão compartilhados de forma isonômica com os pobres que não usufruiram os lucros precedentes. O jogral orquestrado não exclui a preocupação subjacente de um gesto preventivo para não perder os dedos. No caso dos EUA o dono da mão diz claramente que os centuriões encarregados de protege-la foram longe de mais: ‘Meus amigos e eu já fomos bastante mimados por um Congresso amigável com os bilionários', denunciou Buffet. A forma caricata como as coisas se manifestam em certos momentos não deve ofuscar a a gravidade das tensões que elas revelam. A crise atingiu um ponto tal que franjas de endinheirados começam a a acenar com anéis, ainda que sejam imitações baratas dos originais guardados nos cofres.O privilégio desfrutado no ciclo neoliberal, segundo os próprios beneficiados, só foi possível porque o Estado recuou a ponto de se inviabilizar fiscalmente, substituindo o imposto sobre a riqueza por um endividamento público paralisante. Para metabolizar o passivo resultante desse processo três formas são identificáveis na história: a) hiperinflação ou guerra devastadora, ambas dotadas de capacidade destrutiva para eliminar fisicamente uma parte do problema; b) imposto significativo sobre grandes fortunas, sobretudo do setor financeiro; c) arrocho, desemprego e sequestro de direitos sociais.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Os Alquimistas da Ética

Agência Carta Maior - 18/08/2011

Mais de R$ 1 bi sonegados à receita por uma rede de 300 empresas da área química desdobraram-se em saldos em paraísos fiscais, iates, ilhas paradisíacas e mansões. A transmutação do que seria fundo público em lucro privado foi interrompida pela operação 'Alquimia', da PF. Na mesma 4º feira caía o quarto ministro do governo Dilma, acusado de corrupção. O duplo episódio suscita considerações. A primeira diz respeito à extensão do golpe desvelado pela PF. Trata-se de predação superlativa comparativamente ao abominável varejo político do afano feito de porcentagens, nepotismo e caronas em jatinhos. A outra remete à alquimia ética da mídia. Nossos murdochs costumam reservar à política e instituições públicas o rigor de um torquemada. Ótimo. Dobram-se, todavia, quando o malfeito emerge dos mercados. Assim é que o neoudenismo reverbera agora as defecções ministeriais como start para o coro do ‘mar de lama', com o qual tenta ofuscar a superioridade histórica do ciclo presidencial do PT. Nada remotamente próximo ocorre quando o escândalo frequenta a esfera dos mercados. Do que se trata, afinal, a crise financeira se não do sistêmico intercurso de corrupção e fraude entre opacas corporações, governos complacentes e auditorias amigáveis? Mitigam neste caso o que é sistêmico em exceção. Assim os torquemadas trataram o caso Enron. Sétima maior empresa dos EUA, suas ações foram avaliadas em US$ 85 pelo Morgan Stanley em 12/07/2001 e assim recomendadas; em 9 /10/2001 a Merryl Linch ajuizou-as em US 45. Em 02/12/ 2001, a Enron quebrou. Quem se fiou na auditoria da Arthur Andersen, que por 10 anos atestou a excelência financeira da fraude,viu ações virarem pó. O mesmo se deu com a Goldman Sachs. Dias antes da explosão das subprimes,esse altar do jornalismo conservador recomendou a compra de títulos podres dos quais sua própria tesouraria se desfazia às pressas. A lista imensa cabe numa palavra: desregulação. Dinheiro que se autofiscaliza; mercados que se autocorrigem. Ou ainda, Estado mínimo. Não foi esse, por décadas, o tripé de eficiência apregoado pela mídia? A mesma que, entre nós, não poupou obuses à extinção da taxa de 0,38% sobre cheques, na verdade sobre grandes fortunas que assinam grandes cheques? À moda Tea Party, blindados demotucanos e sapadores midiáticos lograram destruir a CPMF em 2007, subtraindo R$ 40 bi ao SUS. Aos que celebravam a vitória contra o ‘custo Brasil' o ex-ministro Adib Jatene retrucou: 'Dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago IR; ela identificou os sonegadores e a arrecadação federal triplicou. Aí começou a brutal campanha contra'. Possivelmente a operação 'Alquimia' tivesse sido dispensável se em vez de extinta, a CPMF fosse aperfeiçoada como antídoto à lavagem e corrupção. Mas a alquimia ética da mídia vetou-a.

terça-feira, agosto 09, 2011

A República se consolida

Mauro Santayana

O Ministro Nelson Jobim, respeitemos os fatos, é um político singular na história recente do país. Ele surge no cenário nacional em 1987, ao eleger-se para a Câmara dos Deputados. Rapidamente, impressionou seus pares pelo desembaraço. Sua vida acadêmica é rica: professor-adjunto de Direito da Universidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em que se formou, nela também obteve o mestrado em Filosofia Analítica e Lógica Matemática. Não obstante esses títulos, Jobim é intelectualmente discreto: nunca demonstra todo o seu saber nos pronunciamentos políticos ou em seus escritos. A vaidade ele a guarda para a prática cotidiana da política. É um homem que, em todos os atos, parece dizer que nasceu para mandar. Mas, pelo que vemos, não entende que o poder depende da legitimidade. Em seu caso, a legitimidade é conferida pela confiança da Presidente. Quando falta legitimidade a qualquer poder, ele é tão sólido quanto uma nuvem de verão.

No duelo de grandeza entre ele e Fernando Henrique, registre-se a verdade, o sociólogo levou vantagem sobre o filósofo e jurista. Matreiramente, como sempre foi, o então presidente valeu-se da intemperança de Jobim, sem que esse percebesse. Fez como se seguisse a orientação do gaúcho, dando-lhe corda, enquanto o conduzia pelos cordéis da lisonja. Jobim tem uma relação quase pavloviana com a real ou falsa admiração alheia. Nesses momentos, ele consegue inflar a alma por dentro do corpo.

Em uma visita que lhe fez, quando ocupava o Ministério da Justiça, o saudoso jornalista Márcio Moreira Alves anotou que o Ministro demonstrava sua cultura, ao ter, sobre a mesa, o conhecido compêndio de ensaios políticos de John Jay, James Madison e Alexander Hamilton, The Federalist. Os três grandes pensadores e políticos norte-americanos, mais do que discutir os fundamentos constitucionais da jovem república, redigiram uma espécie de manual republicano, a partir do pensamento clássico e dos filósofos ingleses do século 17. É, na certa, um bom estudo, principalmente para o uso daqueles que se sentem desestimulados a visitar o pensamento original e mais complexo dos clássicos, de Aristóteles a Locke, de Santo Tomás a Montesquieu, que inspiraram os políticos norte-americanos. Marcito, que se encontrava em fase serena de sua carreira, tratou Jobim com tal bonomia que os maliciosos poderiam ter considerado irônica.

Jobim é vaidoso, embora, pelo que se sabe, não se mete em negócios estranhos. Tal como Romero Jucá, porém, sua adesão ao governo independe de quem o chefie ou do partido que nele exerça hegemonia. É o terceiro período presidencial em que se destaca, nos poderes republicanos, como parlamentar, ministro, juiz e presidente do STF.

Em nenhum cargo Jobim se sentiu tão ele mesmo como no Ministério da Defesa. Seu entusiasmo foi o do escoteiro ao ser admitido no grupo. Tanto assim, que não titubeou: em poucas horas já envergava o uniforme de campanha dos oficiais superiores do Exército. Jobim é assim construído: tem o seu lado lúdico, e algum psicanalista de botequim poderia concluir que ele brinca sempre.

Mandar é com ele mesmo. Lula, que tem outro tipo de astúcia, bem diferente da que esgrime Fernando Henrique, também manobrou bem com Jobim. É certo que Lula não ficou muito à vontade quando Jobim, ao substituir um dos homens mais dignos de nossa história política, o baiano Valdir Pires, cometeu a grosseria de insinuar que seu antecessor não ocupara o cargo com a autoridade que lhe competia. A diferença é que Valdir administrava um ministério de militares em tempo de paz, enquanto Jobim parecia sonhar com o desempenho de Rommel e de Patton nos desertos africanos, e de Eisenhower e Zhukov, no desembarque na Normandia e no avanço sobre a Alemanha. Os chefes militares logo descobriram que Jobim estava encantado em brincar de marechal, e com ele se ajeitaram. Enfim, como Jobim fingia que mandava, eles, mais experientes, fingiam que obedeciam.

Ele se encontrava pouco à vontade, quando despachava com a presidente. Convenhamos que não é cômodo para Jobim submeter-se ao mando de uma mulher. Talvez mais para justificar-se diante de seus amigos paulistas do que para expressar um sentimento real, disse o que disse na festa dos oitenta anos de Fernando Henrique, a propósito dos “idiotas” do governo, com os quais era forçado a conviver hoje, bem diferentes dos “geniais” ministros do excelso intelectual. As suas declarações à Revista Piauí – que ele, sem muito jeito, tentou desmentir – ajustam-se à sua personalidade. A mais grave delas se refere ao episódio da nomeação de José Genoíno como seu assessor, quando afirma que, diante da hesitação da presidente sobre a capacidade do ex-guerrilheiro para o cargo, cortou logo a dúvida: quem sabia se Genoíno desempenharia bem a sua função era ele, Jobim, e não ela, Dilma. Se o diálogo realmente houve, ele não só contrariou as normas do poder, mas, ainda mais, violou as regras do cavalheirismo.

Por mais Dilma Roussef tenha recebido o apoio de Lula, ao assumir o cargo ela se tornou a chefe de Estado do Brasil, com todas as responsabilidades e prerrogativas do cargo, legitimada pela vontade da nação. Ela só tem que obedecer aos interesses nacionais, e cumprir a Constituição e as leis, de acordo com a sua própria consciência. E os que se sentirem incomodados com sua liderança, se assim lhes parecer melhor, podem deixar o governo. O Brasil tem centenas de milhares de cidadãs e cidadãos, patriotas e de probidade, capazes de exercer bem o múnus republicano – mesmo que não conheçam os endereços de Brasília.

Foi assim que se desfez a pequena crise: Jobim se demitiu no início da noite e um grande e sensato brasileiro, Celso Amorim, já foi nomeado para substituí-lo. O Brasil se consolida como República.